O texto que se segue é do meu Alferes Ângelo
O meu bem haja a todos!
Batida de 6 dias - Zona do Quipedro
"Estaríamos em Janeiro de 1964 e, por ordens de Luanda, com a intervenção do batalhão a que pertencíamos, planeou-se uma batida de 6 dias para a zona do Quipedro, que já não fazia parte da área de intervenção da nossa companhia. Era como que uma zona de "ninguém", pois, suponho, até aí nunca deveria ter havido nenhuma operação planeada para aquelas paragens desde o início da Guerra em Angola. Pelo menos a partir do Quijoão, por onde se entraria.
Veio do Sul (Nova Lisboa?!?!) um pelotão de naturais de Angola, comandados por um alferes branco, que se integrou na 422 nessa operação. O meu pelotão foi escalado para ir nesta batida, que era comanda pelo nosso Capitão Vila-Chã. Como iria durar bastantes dias, o médico da companhia, Dr. Rodrigues Alves, também foi "convidado" a participar.
E foi!
Lembro-me que na noite do início da operação, nos foi servido um jantar de primeira qualidade, com bacalhau cozido com todos e vinho. Ao que parece, o vinho era à descrição, pois houve quem "abusasse" dele.
Andamos dois dias praticamente só em mata, sem que nada de anormal acontecesse, até que o 1º Cabo Carvalho (o 2329) do meu pelotão começou a ficar doente, com princípios de paludismo.
Era que o que parecia.
Dizia que era impossível continuar naquelas condições por mais 4 dias, sempre a andar e com chuva. Ainda tentamos pedir um helicóptero por rádio, para ser evacuado, mas não conseguimos contactar com ninguém.
Decidiu-se então que, para não abortar a operação, teria que regressar ao Quijoão e aí pedir por rádio ao Zalala para o irem buscar.
Com o 2329 vieram uns 12 homens, chefiados pelo Sargento Rui, que não tiveram quaisquer tipo de problemas no regresso.
Mais tarde veio a saber-se que a razão principal do mal estar do 2329, teria sido o excesso de bebida à noite da partida, mais o que levava no cantil, que em vez de água era vinho!...
O resto do pessoal lá seguiu em frente e a paisagem começou a mudar. Aparecia mata mas também grandes extensões de capim.
Numa pequena lavra de mandioca, matou-se o 1º "turra"... Não me recordo ao certo como foi, porque nessa altura era o pelotão africano que ia à frente.
Continuamos... Lembro-me bem das dificuldades do percurso, quase sempre a corta mato, da chuva que caía com bastante frequência e termos de dormir assim, enrolados nos impermeáveis, praticamente todos molhados... Mas o cansaço ao fim de 4 dias já era tanto, que dormíamos de qualquer maneira!
Queimámos algumas cubatas que encontramos noutra lavra de mandioca e mais adiante, no mesmo dia, ao longe, a meio de um morro, vimos outro "turra".
Começamos a disparar, qual tiro ao alvo, mas ninguém acertava. Decidi mandar uma Secção (a do Sargento Bento da Silva) atravessar um riacho que passava no vale e separava os dois morros para ver se o apanhavam.
E assim foi.
Viram-no. Chamaram-no dizendo que não lhe faziam mal. Estava armado só com uma catana. Quem se aproximou mais foi o Vitória (2829), para ver se o fazia prisioneiro.
Só que, por medo ou orgulho, levantou a catana ao 2829 e este não teve outro remédio senão dar-lhe um tiro, matando-o.
Todos estes tiros foram ouvidos pelo inimigo que estava na zona e, passadas 1 ou 2 horas, tivemos contra nós fogo de armas ligeiras.
Subimos para o alto de um morro e daí fazíamos fogo uns contra os outros, mas a uma distância razoável, sem que víssemos alguém. Começava a ficar tarde e decidiu-se que o melhor era sair dali antes de anoitecer, o que já estava para breve. Enquanto uns se iam retirando, outros ficaram a "entreter" os "turras" com uns tiros de vez em quando. Fui dos últimos a sair. Vi um agrupamento de soldados inimigos a progredir ao morro onde estávamos. Via-se que tinham instrução militar pela progressão que estavam a fazer no terreno. Talvez até pensassem que já lá não estaria ninguém, pois tinham visto perfeitamente a retirada dos primeiros, dado que era tudo capim.
Acabei por não esperar o tempo suficiente de se aproximarem muito mais, embora pudéssemos eventualmente ter abatido alguns que ficassem mais perto de nós, mas a noite estava a cair e podíamos perder-nos uns dos outros.
O "Viseu" levantou-se e, virado para onde eles vinham, disparou os últimos tiros, chamando-os de quantos nomes se lembrou na altura e fomos embora.
Não fazemos ideia se fizemos baixas ou não. Sabemos que a nós nada aconteceu.
Já no último dia e a entrar para a mata que antecede a do o Quijoão, cuja picada andámos um tempo a tentar arranjar para que pudessem passar viaturas. Era uma mata muito densa e por isso fácil de se montar uma emboscada.
Foi ali que se deu um facto que na altura me marcou e nunca hei-de esquecer.
Connosco iam bastantes carregadores nativos, para transportarem munições e rações de combate.
O nosso médico, com quem estava sempre que possível, já ia fisicamente em baixo, pois não estava habituado a andar tanto. Estávamos nós, quanto mais ele...
Quando já íamos na mata e podia tornar-se mais perigoso, tive o cuidado de me aproximar mais do Doutor, para ver como ia e se estava enquadrado entre os militares. Como ele vinha mais atrás, fui-me deixando ficar para ver se o via. Passaram por mim uns tantos e a certa altura não aparecia mais ninguém. Passou-se um bocado e estava já eu sozinho, sem ver ninguém à minha frente ou atrás de mim...
Perdemos o Doutor... Pensei! Mas entretanto ele lá apareceu, à frente dos carregadores, que eram bastantes, sem que ninguém daquela gente tivesse uma arma sequer.
Se tivesse havido ali "barulho, havia de ser lindo, havia...
Lá voltamos a andar e os da frente, ao ver que ninguém vinha lá pararam e foi rápido voltarmos a estar todos juntos outros vez.
Claro está que dei uma rabecada ao militar que ia à frente do médico para que NUNCA mais o perdesse de vista.
Chegamos sãos e salvos ao Quijoão!
E assim foram passados mais 6 dias da nossa vida em Angola!"