quinta-feira, 2 de junho de 2016

Cartas da Guerra



Hoje vou falar-vos de uma coisa comum a quase todos os soldados de guerra... As cartas de amor.

Vai estrear um filme chamado "Cartas da Guerra", do Ivo Ferreira.

O filme é baseado num livro de António Lobo Antunes, que tem por título "D'este Viver Aqui Neste Papel Descripto - Cartas da Guerra", sobre o qual vou transcrever o prefácio e uma das cartas.

Bem haja a todos!

Um abraço do vosso amigo Aires - 1º Cabo 2625


Do Prefácio

"As cartas deste livro foram escritas por um homem de 28 anos na privacidade da sua relação com a mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de guerra colonial em Angola, sem pensar que algum dia viriam a ser lidas por mais alguém. Não vamos aqui descrever o que são essas cartas: cada pessoa irá lê-las de forma diferente, seguramente distinta da nossa. Mas qualquer que seja a abordagem, literária, biográfica, documento de guerra ou história de amor, sabemos que é extraordinária em todos esses aspectos (...) Este é o livro do amor dos nossos pais, de onde nascemos e do qual nos orgulhamos. Nascemos de duas pessoas invulgares em tudo, que em parte vos damos a conhecer nestas cartas. O resto é nosso."
Maria José Lobo Antunes
Joana Lobo Antunes

A Carta

7.3.71

"Hoje, domingo, passei a manhã numa cerimónia curiosa, a assistir à esconjuração de uma doente, para que a doença saísse de dentro dela. Como sou uma personagem de marca sentaram-me na única cadeira existente, dando a direita ao soba. Depois 3 homens tocavam tambor, a doente foi sentada numa esteira, e a malta dançava e cantava em volta uma melopeia estranhíssima. Estava um calor como não me lembro de ter sentido na minha vida, não havia uma única nuvem no céu e tudo brilhava e reluzia. Assisti à cerimónia por acaso, porque andava à procura de cachimbos e pentes. Aquelas coisas de madeira em que se faz o pirão, uma espécie de almofariz assim, mais ou menos trabalhado, ficava estupendo em nossa casa como cesto de papéis ou outra coisa qualquer. Há-os muito bonitos, mas são bastante pesados. Estou a pensar mandar fazer um baú para levar os objectos que por aqui vou juntando, e que nunca vi em parte nenhuma em Lisboa. Os bibelots ficam por minha conta. A fim de escolher só coisas que valem realmente a pena tenho passado o meu tempo livre a esquadrinhar os quimbos. Hoje, por exemplo, vi um cachimbo giríssimo mas não mo quiseram vender, apesar de eu oferecer a exorbitante quantia de 10$00. Tenho a impressão de que a tia Hiette, por exemplo, perderia a cabeça por estas paragens. Espero que não te horrorizes quando me vires chegar cheio de coisas para as quais, talvez, pelo número, não tenhamos lugar em casa. Vamos a ver se levo algumas em Outubro, quando aí for. E o mais incrível é que no meio disto tudo ainda só gastei 20$00."



Apreciem a leitura!




2 comentários:

  1. Caro amigo Aires.
    Sou um leitor assíduo de Lobo Antunes. Li este livro como não o podia deixar de fazer. As suas primeiras obras em que transcreve a sua vivência na frente de combate no leste de Angola, a sua visão daquela guerra impune e desgraçada, sem sentido, essas obras tocaram-me. Porque apesar de ter vivido 25 de Abril com alegria eu era um miúdo de 14 anos que pouco sabia do regime em que viviamos. Mais tarde fui lendo. E fui-me apercebendo do que me tinha safado. E fui-me apercebendo do que eu fui poupado. Não sei o que faria, se tivesse chegado a minha vez. Fugir? Avançar? Este livro, tão pessoal e tão lindo, é, para mim, de uma beleza indescritível. Amor em tempos de guerra. Abraço amigo Aires. O amigo é um herói! Anónimo, como milhares deles, mas é um herói!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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